O bóson de Higgs é a unidade fundamental de um mecanismo que explica como as partículas ganham massa (Hemera/Thinkstock) |
A confirmação da existência de uma partícula que tem grandes chances de ser o bóson de Higgs
nesta quarta-feira representa o ápice de uma longa saga científica.
Mais do que completar um complexo quebra-cabeças teórico proposto no
início da década de 1970, o anúncio dessa misteriosa partícula coroa os
esforços de milhares de cientistas ao redor do mundo que dedicaram suas
vidas a entender como o maquinário fundamental do universo funciona. A
verificação experimental do bóson de Higgs não trará a cura da aids nem resolverá o problema da fome do mundo, mas não deixa de ser uma vitória do homem sobre a natureza. É bom que a civilização tenha espaço para esse tipo de empreendimento.
MODELO PADRÃO
O Modelo Padrão é a melhor descrição do mundo subatômico. Existem outras, mas nenhuma que tenha tido tanto sucesso em experimentos para prever e descrever as partículas e as forças de suas interações. O Modelo Padrão oferece ferramentas teóricas para o avanço de tecnologias. A cura do câncer ou a construção de uma nave interestelar passam, em última análise, pelo sucesso de um modelo que descreva o comportamento da natureza no mais fundamental dos níveis.
BÓSON DE HIGGS
O bóson de Higgs é uma partícula subatômica prevista há quase 50 anos. Após décadas de procura, os físicos ainda não conseguiram nenhuma prova de que ela exista. O Higgs é importante porque a existência dele provaria que existe um campo invisível que permeia o universo. Sem o campo, ou algo parecido, nada do que conhecemos existiria. Os cientistas não esperavam detectar o campo, mas sim uma pequena deformação nele, chamada bóson de Higgs.
LHC
O Grande Colisor de Hádrons (do inglês Large Hadron Collider, LHC) é o maior acelerador de partículas do mundo, com 27 quilômetros de circunferência. Ele pertence ao CERN, o centro europeu de pesquisas nucleares e está instalado na fronteira franco-suíça. Em seu interior, partículas são aceleradas até 99,9% da velocidade da luz. Os experimentos ajudam a responder questões sobre a criação do universo, a natureza da matéria e fenômenos exóticos observados no espaço.
Sempre foi uma obsessão da ciência encontrar uma única teoria que
explicasse todos os fenômenos da natureza, desde a constituição das
partículas da matéria até as forças que as relacionam. Não porque isso
pudesse resolver os problemas imediatos da humanidade, mas pelo desafio
do conhecimento.
Até o início da década de 1970, o conhecimento humano do mundo
subatômico era uma baderna. Havia muitas teorias – modelo quark, teoria
Regge, de Calibre, Matriz-S, entre outras –, prevendo centenas de
partículas e complexas relações entre elas. Mas elas só conseguiam
explicar pequenos pedaços da realidade. "Não estava claro qual modelo
era o correto", escreveu o físico britânico Stephen Wolfram na revista
americana Wired. "Algumas teorias pareciam vazias, outras eram profundas
e filosóficas. Algumas eram sofisticadas, e outras, entediantes."
As peças do modelo — No início da década de 1970,
contudo, uma teoria se destacou. Nessa época os cientistas confirmaram a
existência dos quarks, partículas que constituem os prótons e os
nêutrons, elementos que formam o núcleo dos átomos. Essa descoberta deu
força a uma teoria que viria a ser conhecida como Modelo Padrão
da Física de Partículas — que previa a existência de 12 tipos de
partículas elementares, suportadas por um campo que confere massa a
algumas delas (como o elétron), mas não a outras (como o fóton).
O pontapé inicial para a confecção do Modelo Padrão foi dado em 1960,
quando o físico americano Sheldon Glashow descobriu uma forma de
combinar a força eletromagnética e as interações fracas dos átomos, duas
das quatro forças fundamentais (as outras são as interações fortes dos
átomos e a gravidade).
Sete anos mais tarde, Steven Weinberg e Abdus Salam afundiram as ideias
de Glashow às do físico escocês Peter Higgs. Em 1964, Higgs propôs a
existência de um campo com o qual as partículas interagem. Essa
interação confere massa às partículas. As que não interagem com o campo
de Higgs não possuem massa e estão fadadas a viajar para sempre na
velocidade da luz, como os fótons, a unidade básica da luz. A unidade
básica desse campo foi batizada com o nome do físico: bóson (nome dado
às partículas que ‘transportam’ energia) de Higgs.
Entre 1972 e 1974 experimentos confirmaram a teoria da interação forte
entre as partículas (mais uma das quatro forças fundamentais). A
descoberta deu ao Modelo Padrão sua forma atual e valeu a Glashow, Salam
e Weinberg o Nobel de Física de 1979.
A teoria de 'quase tudo' — Os cientistas usaram o
Modelo Padrão para prever a existência de várias partículas que ainda
não haviam sido verificadas na prática, e ele não decepcionou. A um
custo de bilhões de dólares, foram construídos aceleradores de
partículas, como o Fermilab, nos Estados Unidos e o LHC,
na fronteira franco-suíça. A descoberta do quark bottom em 1977, o
quark top em 1995 e o tau neutrino em 2000 deram ainda mais crédito ao
Modelo Padrão, fazendo dele a melhor teoria para explicar ‘quase tudo’.
Com ele, é possível explicar com sucesso uma grande variedade de
resultados experimentais, exceção feita ao comportamento da gravidade,
da matéria e da energia escuras e da antimatéria.
Peter Higgs, o 'pai' do bóson de Higgs, na Universidade de Edimburgo, na Escócia. David Noir/Reuters |
A partícula derradeira — De todas as partículas
previstas pelo Modelo Padrão, apenas uma não havia sido verificada em
experimentos: o bóson de Higgs. Sua verificação tornou-se, portanto, uma
questão de honra para os teóricos. Mas não foi fácil. Os primeiros
aceleradores de partícula não foram capazes de encontrá-lo. Nem os de
segunda geração. Foi preciso investir 10 bilhões de dólares para a
construção do Large Hadron Collider, um gigantesco anel de 27
quilômetros de diâmetro na fronteira franco-suíça, potente o suficiente
para esmagar prótons a uma velocidade próxima a da luz e oferecer as
condições para procurar o bóson de Higgs em regiões energéticas
desconhecidas até então pela ciência. Embora não fosse seu único
objetivo, a busca pelo bóson de Higgs é a principal vitrine do LHC e o
principal argumento para convencer governos a gastar dinheiro público em
um empreendimento de ambições puramente teóricas.
A próxima jornada – A longa espera chegou ao fim nesta
quarta-feira. Isso explica o entusiasmo com que cientistas ao redor do
planeta programaram encontros festivos para receber o anúncio do
pesquisadores do LHC. O próprio Peter Higgs foi convidado para o
anúncio. Após os resultados, disse aliviado. “Acho que o encontramos”.
Em uma coletiva de imprensa na Escócia, nessa sexta-feira, disse algo
que estava engasgado há mais de 40 anos. “É muito bom estar certo.”
No Brasil, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) organizou uma
espécie de 'café da madrugada', com suco e salgadinhos para professores,
estudantes e jornalistas na sala de computação do campus da Barra
Funda, em São Paulo. Um telão exibia ao vivo o anúncio dos cientistas do
LHC. Físicos brasileiros, como Sérgio Novaes e Hélio Takai, um em
Genebra e outro em Nova York, vibraram com os resultados. "É, sem
dúvida, o resultado mais importante dos últimos 30 anos na Física de
Partículas", disse Novaes, emocionado, por teleconferência. Líder de um
grupo de pesquisa da Unesp, Novaes trabalha em um dos experimentos que
detectaram o bóson de Higgs e publicou — no início da década de 1980 —
um dos primeiros artigos que descreviam como encontrar a partícula.
A verificação experimental do bóson de Higgs não significa a vitória
completa da ciência sobre a natureza, ainda. Embora o Modelo Padrão seja
a melhor descrição do mundo subatômico, ele diz respeito a apenas 4% do
universo visível. O restante (96%) corresponde à matéria escura e à
energia escura. Alguns cientistas ainda consideram o modelo pouco
elegante por omitir a natureza da gravidade, considerada uma das forças
fundamentais. São questões que ocuparam e ocupam as mentes dos mais
brilhantes cientistas, como Albert Einstein, que perseguiu uma teoria
unificadora até o fim de seus dias, e Stephen Hawking, que ainda luta
pelo mesmo objetivo a despeito de sua condição física
paralisante. Talvez o Modelo Padrão seja parte de um modelo ainda maior
que inclui uma física ainda desconhecida, como propõe a Teoria de
Cordas, escondida no mundo subatômico ou nos remotos e obscuros confins
do universo. A incrível saga do bóson de Higgs parece ter chegado ao
fim. Mas a jornada científica para entender os outros 96% do universo
ainda está longe de acabar.
Retirado da revisa VEJA (http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/a-incrivel-saga-do-boson-de-higgs) em 23/01/2013.